04 fevereiro 2020

A MÍSTICA DA VIDA DE NAZARÉ

Artigo cedido pelo blog da



De MARC HAYET
Prior dos Irmãozinhos de Jesus 

A pergunta que me foi colocada é a seguinte: dizer, em forma de testemunho, como nós, os irmãozinhos de Jesus, compreendemos e vivemos a Mística de Nazaré. 

Olhando para a apresentação da 40ª Semana da Vida Religiosa no site, li que "a mística é experiência, do Mistério, de Deus, do Tudo. A sociedade nos pede para sermos mulheres e homens testemunhas do Mistério". 

Essa questão gira na minha cabeça e eu gostaria de traduzi-la da seguinte maneira: De que aspecto do mistério de Deus somos testemunhas quando nos referimos a Nazaré para viver nossa vida religiosa? E até mesmo, que face de Deus nos seduziu e nos colocou em movimento? De que Deus nos apaixonamos? Apesar de quão pretensioso isso possa parecer. 

Os irmãozinhos de Jesus: Nazaré como caminho de vida 

Talvez seja bom poder dizer em duas palavras quem são os Irmãozinhos de Jesus e o que estamos tentando viver. Vocês vão me permitir que o faça usando uma definição oficial, a que a Igreja nos deu, reconhecendo-nos como uma comunidade religiosa de direito pontifício e que se continuou utilizando mesmo em 2004, quando apresentamos a reforma de nossas Constituições: 

"Este Dicastério deseja profundamente que a prática destas Constituições seja para todos os Irmãos de Jesus uma preciosa ajuda na realização de sua vocação, seguindo o exemplo de Jesus em Nazaré, humilde e escondido, numa vida contemplativa própria, a adoração de Cristo na Eucaristia, a pobreza evangélica, o trabalho manual e uma participação real na condição social daqueles que não têm nome, nem influência". 

Essa apresentação oficial nos parece preciosa: primeiro porque nos coloca em relação direta com Jesus de Nazaré (descrito como "humilde e escondido"); também porque reconhece uma vocação contemplativa com seu próprio caminho e porque nos elementos desse caminho de contemplação, figura o convite à participação real na condição social "daqueles que não têm nome ou influência" para seguir o "Exemplo de Jesus em Nazaré, humilde e escondido". Nossas Constituições detalham, também (precisamente no capítulo que fala da nossa missão na Igreja): 

"Os irmãozinhos estão entre os homens, não para se tornarem pastores ou guias, mas simplesmente para serem seus Irmãos. É principalmente através de sua amizade, como eles falam e eles mostram a fé da Igreja de Cristo aos seus companheiros de vida. Esta comunidade de vida é o seu próprio testemunho, a sua participação na missão da Igreja". 

Eu não sei se existem muitas congregações - contemplativas também - cujo carisma se defina pela condição social de gente comum; nem muitas cuja missão exclua todas as formas de pastoral ou de direção, para insistir na amizade e na fraternidade, a comunidade de vida com o povo, como missão de Igreja e testemunho de fé. 

Concretamente, somos uma pequena congregação de cerca de 220 membros (ainda em cerca de trinta países). Fraternidades com diferentes rostos dependendo do lugar ou do continente onde estão situados, mas com características comuns: pequenas comunidades inseridas em bairros populares (pequenas, entre outras razões, para poder inserir-se "sem muitas malas"), insistindo no relacionamento com as pessoas, na proximidade, na amizade, na escuta, na reciprocidade, muitas coisas que envolvem um estilo de vida próximo ao povo. Um elemento importante deste estilo de vida é o "trabalho manual" (talvez antes se insistia sobretudo neste), normalmente do tipo "trabalho-assalariado-obreiro", o tipo de trabalho que fazem as pessoas comuns e que nos permite compartilhar com eles. Mas, acho que não é o único elemento que nos aproxima (e mais ainda agora que há muitos irmãos que estão aposentados); é como um conjunto de elementos: o alojamento[1] é um deles, o "ritmo de vida" e um "estilo", poderíamos dizer "uma maneira de ser e de estar". 

Eu gostaria de concretizá-lo um pouco com dois exemplos: 

O primeiro vem do Irã (uma fraternidade que infelizmente tivemos que fechar): quando o irmãos decidiram fundar neste país, a única possibilidade para obter um visto era trabalhar no cuidado de leprosos (a verdade é que não havia muitas pessoas que queriam cuidar deles). Havia entre os irmãos um médico, enfermeiros, um especialista em próteses, como podem ver, ofícios que não são muito "da base". O leprosário era, na verdade, um pequeno povoado com famílias, artesãos, pequenas oficinas, comércios e um hospital. E tudo isso numa área isolada, a quilômetros da cidade mais próxima; o povoado era cercado e à noite fechavam as portas e era proibido sair. Toda a equipe do hospital vivia fora do recinto e vinha todos os dias para trabalhar. Quando os irmãos chegaram, colocaram como condição, para ficarem, ter uma casa dentro do recinto e morar com as famílias da cidade. É tudo: depois dessa decisão importa pouco que um seja médico, talvez o trabalho mais "alto" do povoado: as pessoas percebem muito bem onde estão os seus valores e não se importam com o resto. 

O segundo exemplo vem do Egito: pelas mesmas razões de visto, dois irmãos começaram uma fraternidade em uma cidade muito grande no Alto Egito, trabalhando para uma associação com projetos de desenvolvimento: um deles colocou em andamento um centro de formação para trabalhos relacionados com a madeira, graças ao qual, muitos jovens puderam ter um ofício e um trabalho e isso significa poder construir uma casa, se casar e situar-se na vida. 

Quando visitei essa fraternidade, tive numa tarde, uma longa conversa com um grupo de jovens, um deles mais tarde, me escreveu para dizer: "Ei, nossos dois irmãos já são idosos, você que é o chefe, tem que enviar-nos um irmão mais novo. Porque, você sabe? os irmãos para nós são muito importantes: eles se vestem como nós, comem como nós, com eles eu posso falar sobre minhas histórias e do que me preocupa, não é necessário marcar uma consulta para conversar com eles; os irmãos, para mim, são como o ar e a água!"

É uma expressão muito bonita, mas o que mais me impressionou nesta história, é que o que era importante para este jovem, o que era primordial para ele e pelo que ele agradecia a presença de irmãos, não era a formação recebida e que lhe permitia viver de forma autônoma, mas a atitude dos irmãos, a sua proximidade, sua escuta, sua atenção, em uma palavra, o fato de que eram seus irmãos. 

Poderíamos evocar dezenas de testemunhos um pouco menos exóticos, mas igualmente verdadeiros, estou convencido de que é a experiência de cada um de nós. 

Outro elemento que compõe esse feixe e que, sem dúvida, é mais discreto é o compromisso com uma vida de oração: não somente nos longos momentos do dia a dia ou nos momentos de retiros na solidão, mas na convicção de que esta proximidade com as pessoas, compartilhando nossa vida com eles é, em si mesmo, um caminho para descobrir o rosto do Senhor. Voltaremos a esse aspecto. 

No ano passado, estivemos trabalhando em uma pesquisa-questionário. Cada região (um espaço geográfico que agrupa várias fraternidades) foi convidada a expressar o que achava ser hoje, o coração da nossa vocação. Partindo de uma grande variedade de pontos de vista, era chamativo e até emocionante, ver o rosto da fraternidade que emergia das respostas. Permitam-me ler uma passagem da síntese que acho muito significativa: 

"De nossa parte, é impressionante ver como, partindo de contextos, experiências e expressões diversas, alguns traços se destacam com força: 

A partir do rosto de Deus revelado em Jesus de Nazaré e do convite para entregar nossa vida; Comprometidos numa vida de oração forte e na busca do rosto de Deus na vida e nos encontros de todos os dias; Caminhando com outros em uma vida comunitária fraterna atenta à pessoa de cada um; 

O desejo de fazer-nos "próximos" e irmãos daqueles que não "têm nome", partilhando suas vidas (de acordo com os contextos e as sensibilidades, nos expressamos dizendo que queremos estar com os que estão no "último lugar" ou que queremos partilhar a vida comum do povo), para amá-los gratuitamente. 

Este termo de gratuidade parece estar no coração da nossa vocação: não quer dizer que rejeitemos o compromisso, nem que renunciamos à fecundidade, nem rejeitamos compartilhar as convicções que nos fazem viver. Significa uma aproximação de cada pessoa, no respeito do que se é, sem um projeto para ela, simplesmente para testemunhar-lhe amor e caminhar em direção ao nosso Pai comum, numa relação sem poder, de igualdade e reciprocidade. 

Conscientes de que a Igreja nos reconheceu e confiou-nos esta vocação original e, sem dúvida: uma comunidade religiosa contemplativa que é enviada para viver no meio do povo, sem uma tarefa pastoral ou social, mas simplesmente para ser seus irmãos". 

O que eu acho interessante sobre esta pesquisa é que trata sobre uma releitura da nossa experiência de vida. Nossa fraternidade começou como um mosteiro no Saara em 1933. A partir de 1947 ocorre uma grande mudança: passamos de um mosteiro para as pequenas comunidades de inserção no meio de gente simples com a intuição de que era um caminho de vida. 65 anos depois, esta releitura confirma: Sim, "Deus estava aqui e eu não sabia", dizendo nas palavras de Jacó. 

Carlos de Foucauld: da separação à proximidade 

A mudança de 1947 foi feita após uma "crise" na Fraternidade, como um desejo de retornar à fonte de Carlos de Foucauld e seu "olhar" sobre Nazaré. E talvez, precisaremos passar por Charles de Foucauld, uma vez que recebemos dele esta intuição da "mística" de Nazaré, para ver como vai evoluindo sua concepção de Nazaré. Unicamente, gostaria sublinhar algumas etapas significativas. 

"Eu perdi meu coração por Jesus de Nazaré, crucificado há 1900 anos, e tanto quanto minha debilidade permite, não procuro outra coisa que imitá-lo[2]". 

Carlos nos dá uma linda definição de sua vida: sua história após a conversão é, em efeito, em primeiro lugar uma história de "coração dado e perdido", a história de uma amizade real e forte com Alguém que está vivo e perto, e cujo rosto o fascinou: Jesus de Nazaré. Uma procura que levará tempo. 

Logo após sua conversão, enquanto procurava como entregar sua vida a Deus, ele fez uma peregrinação à Terra Santa e, visitando Nazaré, andando por suas ruas, "vislumbrou" como ele diz, o que pôde ser a vida de Jesus: o simples vizinho de uma cidade, uma daquelas pessoas anônimas que Carlos via nas ruas; e como seu olhar é o de um ocidental membro de uma família rica, ainda o fascina mais: o filho de Deus escolheu esta vida tão banal! Ele tem em sua imaginação a imagem da sua época na vida da Sagrada Família de Nazaré: uma vida de silêncio, oração constante com as mãos juntas todo o dia! (...) e a essa imagem Carlos acrescenta extrema pobreza, a "abjeção" como ele a chama. Para encontrar essas condições de silêncio, recolhimento e de pobreza na intimidade com Jesus, escolhe logicamente a vida monástica e entra na Trapa (16 de janeiro de 1890). 

Sairá 7 anos depois (16 de fevereiro de 1897) e se instala na mesma Nazaré, perto das Clarissas que o hospedam numa casa do jardim e confiam-lhe alguns trabalhos. Que ele explica numa carta: 

"O bom Deus me permitiu, o mais perfeitamente possível, encontrar aqui o que eu estava procurando: pobreza, solidão, abjeção, trabalho humilde, completa escuridão: imitação, o mais perfeita possível, do que foi a vida de Nosso Senhor Jesus nesta mesma Nazaré (...) A Trapa me fazia subir, me dava uma vida de estudo, uma vida honorável (...) por isso que deixei a Trapa e abracei aqui a existência humilde e oculta do divino obreiro de Nazaré[2]". 

Expressa bem qual é a leitura que nesse momento faz do Nazaré de Jesus: pobreza, solidão, abjeção, trabalho, escuridão social (alusão aos estudos como promoção social). E a resume na fórmula: "a existência humilde e oculta do divino obreiro de Nazaré". Tomou consciência da diferença de natureza que há entre a pobreza do monge e a pobreza do pobre, pobreza de meios e de status social. E sente que é precisamente esta última a que o aproxima de Jesus de Nazaré. É interessante saber que entre os estímulos que provocaram essa tomada de consciência, houveram raras ocasiões de conhecimento das condições concretas de vida de uma família pobre: 

​​"Uns oito dias atrás me enviaram rezar, por um pobre católico indigente que morreu, na aldeia vizinha: Que diferença entre a sua casa e os nossos quartos! Eu suspiro por Nazaré (...)[3]". 

Da mesma forma que lhe doeu ver que seu mosteiro estava protegido, enquanto na área ocorreram os primeiros massacres de armênios cristãos[4]. Com as Clarissas de Nazaré ele acha ter encontrado a solução: ao mesmo tempo intimidade com Jesus e a escuridão social do pobre. 

Depois de três anos e meio em Nazaré, ele aceita ser ordenado sacerdote (o que até então tinha parecido contrário à humildade social de Nazaré) e se produz uma nova mudança: vai viver na Argélia: 

"Meus últimos retiros de diaconato e sacerdócio me têm mostrado que esta vida de Nazaré, minha vocação, eu deveria vivê-la não na tão amada Terra Santa, mas entre as almas mais doentes, as ovelhas mais perdidas, as mais abandonadas: este divino banquete, do qual eu era o ministro, era necessário apresentá-lo não aos irmãos, aos familiares, aos vizinhos ricos, mas os mais coxos, os mais cegos, os mais pobres, às almas mais abandonadas, àquelas que estão mais carentes de sacerdotes[5]". 

Sempre se trata sobre a vida de Nazaré, mas compreendeu que para estar com Jesus, é preciso ir lá onde Jesus foi, perto dos mais abandonados: não se trata de separar-se e isolar-se como na Terra Santa, mas "viver entre" os mais desamparados. 

Esta nova perspectiva lhe colocará uma nova questão: Como conciliar estar com o povo (que não demorarão em invadir sua casa) e o recolhimento para uma vida de oração (para estar perto do amigo)? Em uma viagem que faz ao grande sul do Saara procura um lugar para se instalar entre os Tuaregs . Um dia, encontra um lugar que parece adequar-lhe, ao pé de um penhasco e perto de um caminho pelo qual passam as pessoas. Mas, há de se estabelecer no alto de um penhasco para garantir o recolhimento na solidão, ou abaixo para poder ter contato com pessoas no vai e vem da vida? Anota suas dúvidas e reflexões e coloca na boca de Jesus o que ele acha que é o comportamento a seguir: 

"Para acolhê-lo, é o amor quem o deve acolher em mim internamente e não a distância de meus filhos: olhe para mim neles; e como eu em Nazaré, mora perto deles, perdido em Deus. Nestas rochas onde, apesar de você, eu lhe conduzi, você tem a imitação das minhas moradias em Belém e Nazaré, a imitação de toda a minha vida em Nazaré (...)[6]". 

Nova leitura da Nazaré de Jesus que o faz exceder, por cima ou pelo coração, a tensão presença-recolhimento: pelo amor, Jesus podia pertencer, ao mesmo tempo, inteiramente a Deus e inteiramente aos homens. É o amor que nos tem "reunidos" em Deus; se realmente amamos, podemos nos entregarmos totalmente e sem medo: nos abandonamos a Deus dando-nos aos homens. Definição magnífica e sóbria de Nazaré: "Como eu em Nazaré, mora perto deles, perdido em Deus". 

Um dos textos mais conhecidos de Charles de Foucauld sobre Nazaré está escrito no ano seguinte, quando já está instalado em Tamanrasset: "Jesus te estabeleceu para sempre na vida de Nazaré: 

A vida de missão ou de solidão não é, por você, como não eram para ele, senão só exceções: praticá-las sempre que sua vontade a indique claramente: e no momento em que já não seja indicado, regressa à vida de Nazaré (...) Seja estando sozinho, seja estando com alguns irmãos (...) tenha por objetivo a vida de Nazaré, em tudo e para tudo, na sua simplicidade e amplitude (...), por exemplo (...), sem hábito - como Jesus em Nazaré; sem clausura - como Jesus em Nazaré; sem uma casa longe dos lugares habitados - como Jesus em Nazaré; não menos de 8 horas de trabalho diário (manual ou outro, embora se pode ser manual) - como Jesus em Nazaré; sem grande posses, nem grandes casas, nem grandes despesas, nem grandes esmolas; uma extrema pobreza em tudo - como Jesus de Nazaré (...) Em uma palavra, em tudo: Jesus em Nazaré (...) Sua vida de Nazaré pode ser vivida em todos os lugares: viva-a no lugar mais útil para o próximo[7]". 

Continua sendo uma leitura da Nazaré de Jesus, tendo aqui como pano de fundo a vida religiosa e seus quadros habituais. E vemos bem onde está agora o acento: os slogans dados tendem a quebrar a distância que poderia haver entre uma imagem da vida religiosa e a vida cotidiana do povo. 

Também, de repente, agora que ele sabe como guardar o coração em Deus estando com o povo e, agora que adotou um estilo de vida semelhante à do povo, Nazaré já não será mais um modelo fechado, deve ser possível viver de diversas maneiras ("sua vida Nazaré pode ser vivida em todos os lugares") e o importante não será a forma, mas o objetivo ("viver no lugar mais útil para o próximo"); por nossa proximidade, se estamos unidos a Deus e aos homens no amor, a boa notícia de um Deus próximo é anunciada aos pobres e é o seu verdadeiro tesouro. 

Carlos passará os últimos anos de sua vida fazendo-se próximo dos Tuaregs, será um caminho de amizade que vai se construindo pacientemente. Aprenderá, pouco a pouco, a reciprocidade de um relacionamento verdadeiro (especificamente será atendido por eles em um momento de doença grave); trabalhará duro para conhecer sua cultura, aprenderá a amá-los: 

"Passei o ano inteiro de 1912 nesta aldeia de Tamanrasset. Os tuaregues são para mim uma companhia reconfortante; não sabia dizer quanto bem eles fazem para mim, quantas almas retas eu encontro entre eles; um ou dois são verdadeiros amigos, coisa rara e preciosa em todas as partes[8]". 

Eu não posso terminar essa jornada em torno à leitura que Carlos de Foucauld faz de Nazaré, sem citar um texto que tem uma grande importância para mim e está escrito alguns meses antes de sua morte: Carlos procura um sacerdote para garantir a postura em curso na França de uma Associação de Fiéis na qual está trabalhando faz alguns anos. Escreve: 

"Eu me acho menos capaz, que quase todos os sacerdotes, para fazer as gestões necessárias, não tendo aprendido mais do que rezar na solidão, a calar-me, a viver com livros e mais ainda conversar com familiaridade - cara a cara - com os pobres[9] ". 

Este texto me afeta porque toca a minha própria experiência e, como Irmão de Jesus, quero dizer: Vejam ao que leva a frequência de Jesus de Nazaré! É um aprendizado: o da oração, o da escuta e o de conversas familiares com os pobres, três coisas que aprender e a última - em expressão de Carlos - aparece como aquela que aprendeu melhor. Daqui, deste aprendizado, nasce, pouco a pouco, a abertura do coração, uma capacidade de encontrar o outro no que é, entendê-lo por dentro, apreciá-lo. 

Não é este o mesmo caminho que faz Jesus de Nazaré? Isso nos leva à Nazaré de Jesus: que leitura fazemos nós? 

A Nazaré de Jesus: quando Deus se humaniza 

Às vezes, nos dizem: "Mas se o evangelho não diz nada - ou quase nada- sobre os anos de Jesus em Nazaré, como vocês pode tomar Nazaré como uma referência de vida?" É verdade que os evangelhos são mais que discretos, mas o pouco que eles dizem é muito significativo e, claro, não foi incluído por acaso. Um bom motivo para olhar com um pouco de atenção. Vejamos alguns elementos que nos são entregues: 

Tanto Nazaré, como Galileia são lugares insignificantes na história da salvação e, portanto, profundamente desprezados: "Pode alguma coisa boa sair de Nazaré?" Natanael (Jo 1,46); "Estude e você verá que de Galileia não sai profetas", dirão os fariseus (Jo 7,52). 

Para grupos religiosos, os círculos do poder, doutores e advogados, Jesus é um homem desta província marginal e pouco confiável. E eles não têm melhor opinião dele e daqueles que o seguem: "essa gente que não conhece a lei, são uns malditos!" (Jo 7, 49) (Algumas traduções dizem "esta massa"). 

Exposto sem proteção, para os notáveis, um ​​simples peão de um xadrez político ("vocês não entendem nada, não vêm que é melhor que morra um só pelo povo e que não pereça toda a nação?"), Jesus assume, até o fim, essa situação de homem da aldeia ordinária que o leva até a morte. O evangelho insiste em nos dizer que, em tudo isso, há uma revelação do rosto de Deus e de sua maneira de fazer: "Você acha que eu não posso pedir ao Pai que me envie imediatamente mais de doze legiões de anjos? Mas então, como o escrito será cumprido, que isto tem que suceder?" (Mt 26,53ss; cf. Jo11,51s). E tem que acontecer assim para revelar algo de Deus. 

É impressionante pensar que tudo Jesus nos fala sobre Deus, sobre o homem, sobre relacionamentos entre Deus e o homem, foi pensado e sentido por alguém dessa "massa" dessa multidão comum, desprezada e vista com desconfiança pelos especialistas e pelos grandes. Sua palavra é uma palavra de "pequeno", de alguém que integrou em sua personalidade esse desprezo com o qual olham àqueles que são como ele. Acho que não nos surpreendemos, nem nos maravilhamos o suficiente. Deveríamos nos permitir ler com outros olhos suas palavras sobre o Pai misericordioso, ou sobre o samaritano. Misteriosa atitude de Deus que assume, não a humanidade em geral, mas esta humanidade muito precisa e concreta, sem dúvida, porque a julga mais em disposição de expressar corretamente quem é e o que quer. "De Nazaré pode sair algo bom?" 

A oferenda de Maria e José por ocasião da apresentação de Jesus é a típica de famílias modestas (Lev 12, 6-8), embora o Levítico proponha a oferenda para as famílias mais pobres (Lev 5,11). Um homem comum de Nazaré, sem realce particular. 

Quando Jesus começa a ensinar e curar, o povo de Nazaré ficará completamente surpreso, inclusive escandalizado: "De onde ele consegue esse saber e seus milagres? Não é este o filho do carpinteiro?" (Mt 13,58). Também o povo de Jerusalém se surpreenderá e perguntará: "Como tem esse tal cultura , se não tem instrução?" (Jo 7,15). 

Essas interrogantes têm uma resposta muito esclarecedora nos Evangelhos: "Eles voltaram para a Galileia, para sua Cidade da Nazaré. O menino crescia e se fortalecia, enchendo-se de saber e a graça de Deus o acompanhava" (Lc 2,39ss e Lc 2, 51ss). 

Encontramos esta fórmula duas vezes: em Lc 2.39s depois da apresentação de Jesus no Templo e em Lucas 2.51s depois da cena de Jesus perdido e encontrado rodeado de doutores. 

Em dois momentos, depois de duas cenas que se desenvolvem no Templo, Nazaré é apresentado como um lugar de crescimento da graça e escola de sabedoria. E é algo mais marcante porque os textos de Lucas se referem à história do jovem Samuel (Lc 2,52 que retoma 1 Sm 2,26). Mas para Samuel (e o texto o detalha várias vezes), o lugar de crescimento no serviço de Deus será o Templo (1Sm 2, 11.18.21.26 e 1Sm 3). É significativo e certamente intencional que Lucas recolha a mesma expressão para melhor sublinhar a diferença radical e a novidade da situação de Jesus: seu lugar de crescimento em estatura, em força e em sabedoria, é Nazaré. E Lucas insiste: no final da cena em que Jesus está cercado pelos doutores, Jesus se surpreende: "Vocês não sabiam que eu deveria estar na casa (nas coisas) do meu Pai?" Nossa lógica responderia: 

"É evidente. Que fique no templo: ao fim e ao cabo é a casa do seu Pai, certo? E as coisas de Deus são feitas no Templo". O evangelho, por sua vez, liga duas informações: que os pais não compreendem e que volta com eles para Nazaré: 

"Vivia sujeito a eles e crescia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e diante dos homens". Claro que deve estar em casa de seu Pai, mas diante dos olhos perplexos de seus pais, Jesus descobre que estar na casa de seu Pai é estar com eles em Nazaré e ser o filho do Altíssimo é estar submetido a eles. 

É em Nazaré onde ele vai para crescer em estatura e sabedoria. Há de ser enfatizado que isso significa: na escola da gente simples e da vida cotidiana, através dos relacionamentos familiares, na aldeia, na sinagoga, no trabalho, observando a vida, pessoas, natureza e escutando. 

Para falar a verdade, para mim, isto é o mais importante de Nazaré, a chave: Nazaré é o lugar onde Deus se humaniza, onde o filho de Deus vai se fazendo homem, e faz isso na escola da vida com pessoas comuns. Para dizer isso com palavras sonoras, Nazaré é o lugar sociológico da encarnação; para dizê-lo com palavras mais simples: se tivesse nascido em uma família sacerdotal ou com um pai escriba ou doutor da lei, seu discurso e sua personalidade teriam sido completamente diferentes. Fala-nos de Deus com os termos de um camponês da Galileia. É importante ter consciência disso. Nós lemos "o Verbo se fez carne" e somente pensar nisso nos convida para uma profunda contemplação; mas saber que o Verbo se fez esta carne particular, galileu de Nazaré, deveria também nos maravilhar. 

Por que vocês pensam que Jesus exclamou um dia: "Eu te abençoo, Pai, Senhor do céu e da terra, por ter ocultado estas coisas aos sábios e inteligentes e ter revelado aos pequeninos (...) Ninguém conhece o Filho mas ao Pai e, ninguém conhece ao Pai mas ao Filho e aquele a quem o Filho deseja revelá-lo" (Mt 11, 25 ss ), mas porque ele próprio fez a experiência desta sabedoria? E o Filho que revela, é "o divino trabalhador de Nazaré humilde e pobre", como Carlos de Foucauld expressaria. 

Consequentemente, o que é realmente importante não é tanto imaginar como seria a vida de Jesus em Nazaré, mas examinar no Evangelho o que Jesus aprendeu em Nazaré e que tipo de homem foi se formando. E, por que é tão importante? Porque se o contexto da vida com pessoas simples é a terra fértil que formou Jesus, estou autorizado a pensar que nessa mesma terra fértil e com o mesmo Espírito que animava Jesus (e que nos foi prometido e dado), Nazaré pode ser, também para mim, lugar de crescimento e descoberta, "diante de Deus e diante dos homens". 

Eu já disse a vocês o que eu acho que é o coração, mas lhes pediria para continuar um pouco mais juntos para "descobrir" que tipo de homem formou Nazaré, dando uma volta rápida pelo evangelho. É apaixonante ler o Evangelho tentando apontar o que Jesus integrou da escola de vida em Nazaré. Sempre descobrimos novos aspectos. Por que não nos determos em alguns? 

• A liturgia familiar, a oração na sinagoga vão formando sua oração. Além disso, Jesus desenvolve uma relação muito íntima e muito especial com Deus, a quem ele chamará de "Abba, papai". Y podemos ver como alimenta essa relação, dedicando tempos para orar ao seu pai: levanta-se cedo (Mc 1.35) ou fica até tarde da noite (Mt 14,23); isola-se e o procura ( Jo 6,24). É uma relação sempre alerta, que surge e que se desperta em cada acontecimento e em cada encontro (Mt 11,25ss; Jo 11,41 ) e que é acolhida de maneira discreta no segredo do coração porque ele aprendeu que "o Pai vê no segredo" (Mt 6, 4.6.18). 

• Sem dúvida, porque ele teve a experiência do olhar de desprezo com o qual se olham às pessoas simples e comuns, sublinha sempre o valor dos pequenos: é a vontade do seu pai do céu que não se perca nenhum desses pequeninos" (Mt 18,14). 

Não suporta tudo o que exclui por causa da origem e da situação social: aproxima-se dos leprosos e os toca, contagiando-se de suas impurezas (Mc 1, 40-45); deixa se tocar por uma mulher de má reputação (Lc 7, 36ss); inclusive se atreve a declarar "magnífica" a fé dos pagãos (Lc 7,9; Mc 7, 24-30). 

• Aprendeu a olhar aos acontecimentos de todos os dias como pequenas mensagens que falam do Pai; tem sobre as coisas e eventos uma espécie de olhar contemplativo que o faz ir ao fundo do seu sentido: vejam as flores do campo e os pássaros do céu e pensem em seu Pai que vela sobre todos vocês" (Mt 6, 25ff); "Vejam o grão que cresce sem que saiba como e lembrem que o Reino cresce também, pouco a pouco embora não o percebamos" (Mc 4:27); "Vejam essa mulher que varre toda a casa para encontrar a moeda, bem, é assim que o seu Pai procura todos os que se perdem" (Lc 15, 8ss); "Olhem como a chuva cai sobre os justos e injustos (Mt 5,45), vejam como o trigo e ervas daninhas crescem ao mesmo tempo (Mt 13, 24ss) e entendam que o Pai, que é o único que pode dizer quem é mal ou bom, oferece sempre uma oportunidade para voltar-se para Ele". 

• É principalmente as pessoas, as quais olha, com esse olhar que vai além das aparências e que vê o coração. Sim, ele sabe muito bem o que há de falso (de desprezo) nas ideias preconcebidas que temos sobre as pessoas. Ele experimentou a generosidade espontânea das pessoas que não têm nada e quer nos fazer ver a verdadeira grandeza, a dignidade de todos aqueles que encontra: faz notar a oferta discreta de uma viúva que deu tudo o que tinha (Mc 12, 41ff); convida Simon a abrir os olhos: você vê essa mulher? Você realmente a vê? Se ama desta forma – esta que você despreza - é porque foi perdoada! (Lc 7,44); e coloca a cada um diante de sua consciência quando estão dispostos a apedrejar a mulher surpreendida em adultério (Jo 8,1ss). 

• Sempre se lhe vê disposto a aprender e questionar-se quando encontra retidão e fé, venham de onde vier: de estrangeiros como o centurião (Lc 7,1-10) e da cananeia (Mt 15,21-28) (que se expressam, como Ele numa língua cheia de imagens), ou de sua mãe ( Jo 2,1-11; cf Lc 2,48-52), ou de um escriba: "não está longe do Reino de Deus" (Mc 12,34). 

• Mostra uma sensibilidade extraordinária para as desgraças do povo e em particular dos pobres. Muitas vezes o evangelho nos diz que ele está comovido, inclusive profundamente afetado: vendo ao povo, ovelhas sem pastor (Mt 9,36); diante da viúva que leva para enterrar seu filho (Lc 7,11ss); diante de todo tipo de doentes, aqueles que se aproximam dele e aqueles que ele próprio encontrará ( Jo 5,6). Essa compaixão lhe dá força e coragem diante de situações das quais todos fogem , como os endemoniados gerasenos (Mt 8,28). 

De Nazaré foi guardando todos os provérbios e histórias e sabe falar com as palavras simples dos camponeses. Com seu olhar de "pequeno", observou a vida das pessoas e dos "grandes": o juiz injusto (Lucas 18,2ss), o rico inconsciente de tudo o que lhe rodeia (Lc 16,19ss), o administrador corrupto ( Lc 16: 1ss), o sacerdote e o levita prisioneiros em seu mundo (Lc 10,31). Conhece a humilhação do pobre que não pode convidar ninguém (Lc 14, 14). Ele aprendeu o senso comum da gente simples que não entendem a lei quando não está ao serviço da vida: 

"Quem pode fazer-me acreditar que se o seu filho ou um boi cair num poço no sábado, não vai tirá-lo porque é sábado?" (Lc 14,5; Jo 7:23). 

Como as pessoas simples captam bem o que soa falso, têm um olfato para isso e o que reprova com mais insistência é, precisamente, a hipocrisia: espeta aos fariseus amigos do dinheiro, "Vocês são aqueles que se dão de irreprocháveis diante do povo, mas Deus conhece-lhes por dentro, e essa exaltação entre os homens repugna a Deus" (Lc 16,15). 

Com esta atitude não se consegue unicamente amigos, claro!, mas assume-lo: e se diz dele que é um bêbado, que não pensa em nada além de comer, que anda apenas com pessoas pouco recomendáveis (Lc 5,30; 7,34; 15.2). O evangelho, muitas vezes, nos diz que produzia muito "ranger de dentes", enquanto os simples ostentavam sorrisos de alegria ouvindo as palavras de misericórdia que saíam da sua boca e as curas que fazia (Lc 13,17; cf. Lc 04:28 11,53, Mt 15,31). 

É muito interessante ver como o Evangelho de João – que dizem ser mais "contemplativo" - sublinha o tema de Nazaré. No início nos encontrávamos com a pergunta: "De Nazaré pode sair algo de bom?" (Jo 1,46); no final, no letreiro pregado na cruz, Pilatos ironiza: "Jesus, o nazareno, o rei dos judeus" (Jo 19,19, somente João menciona o nazareno). Tudo parece dar razão aos céticos. No entanto, sob a aparência de um jardineiro, Maria reconhecerá a voz de seu Mestre; de incógnito na beira do lago, o discípulo amado reconhecerá o Senhor. Não, não é uma revanche, nem o fim de um parêntese que colocaria as coisas no seu lugar: o Mestre e Senhor não aparece com os traços, recuperados, de um grande senhor; ainda é Jesus de Nazaré e nós teremos que reconhecê-los em suas características comuns. Os Sinópticos o dizem de outra forma: 

"Procurem ao Jesus de Nazaré, o crucificado, não está aqui, mas ressuscitou (...) lhes precede (...) na Galileia, lá irão vê-lo" (Mc 16,6ss). 

Eu não sei o que acontece com você, mas para mim esta leitura do evangelho me deixa maravilhado. Sinto-me como "em casa" nestes textos, não só porque me mostram o rosto de Jesus que me fascina, mas porque por trás de cada cena, poderia dar nomes de pessoas cuja atitude me ajudaram a entender a palavra de Deus e decifrar seu mistério. 

Eu acrescento uma coisa: que Jesus adquiriu esta face, que foi formado nesta escola, é também uma revelação do mistério de Deus: 

Costumamos dizer, com palavras imbuídas de piedade, que em Nazaré Deus ocultou sua divindade. Mas é precisamente o contrário: é em Nazaré que Deus revelou sua verdadeira face de Deus! Quando Ele quer dizer-nos quem é verdadeiramente, assume o rosto de um homem simples de Nazaré, dessa aldeia desconhecida na Bíblia, numa região da periferia, longe do Templo e centros religiosos, longe de Judeia e dos círculos de poder, "encruzilhada das nações pagãs" e contaminada por elas. Como querendo dizer-nos: "Todos os grandes discursos de todas as religiões e de todas as teologias me apresentaram como "o Altíssimo", "o Outro", "o Absoluto", “o Separado” e, sem dúvida, são certos, com a condição de que sejam capazes de esvaziá-los de seu sentido habitual! E vocês estariam mais perto de capturar a minha realidade - que todas as formas nenhum termo é capaz de traduzir - se me chamassem ao mesmo tempo "o Baixíssimo", “o Totalmente próximo", “o Comprometido", “o Servidor". Jesus afirmará claramente: 

"Vocês me chamam de Mestre e Senhor, e com razão, porque eu sou, mas eu sou um mestre e um senhor que lava seus pés e se vocês querem ser dos meus, devem fazer o mesmo" ( Jo 13, 13s). 

Só podemos exclamar: "A ti o reino, o poder e a glória" se não se esquecemos que sua realeza está anunciada em um cartaz pregado a uma cruz e que é reconhecida por um condenado à morte, a majestade de um Nazareno ( Jo 19,19), quem dá a vida quando parece perdê-la; seu poder é o de um amigo que mendiga um amor renovado de quem o traiu ( Jo 21,15s) e que essa traição foi precisamente: "Não tenho nada a ver com esse Nazareno" (Mt 26,11s). 

Com Nazaré, a ação de Deus também se ilumina com uma nova luz. Já não se apresenta mais como alguém que salva de fora, "com mão forte e braço poderoso". E inclusive continua sendo aquele que "recolhe as minhas lágrimas em seu odre" ( Sl 56,9), é do interior, chorando com a gente, "Tomou as nossas fraquezas e carregou com as nossas doenças" (Mt 8,17) , "Ele foi provado em tudo como nós, por isso não tem vergonha de nos chamar de irmãos" (Hb 4,15 e 2,11) nos diz a Escritura. Não podemos perder de vista o fato de que é no concreto de Nazaré onde foi realizada essa proximidade conosco. 

A atitude básica de Nazaré: ser irmão 

Este é o rosto de Jesus que nos seduziu, estes são seus passos que queremos seguir, escolhendo viver entre pessoas simples, entre os pobres. 

Eles muitas vezes nos dizem: "Vocês são uns iludidos: de qualquer maneira vocês não são como os pobres". E é verdade: mesmo para aqueles de nós que viemos de famílias modestas, a formação que recebemos, as garantias e a segurança que dá uma comunidade, a falta de preocupação pelo futuro dos nossos, levam-nos longe da situação dos verdadeiros "pequenos". O que fazer, como agir? 

Talvez deva começar dizendo que a miséria e certas formas de privação e pobreza (material, cultural, educacional) são males que devem ser combatidos. 

Não é a miséria que eu escolhi, o que escolhi é viver com os povos que sofrem a miséria ou a pobreza e lutar com eles para sair dela. Quer dizer que me recuso a tentar sair sozinho e que aceito, por amizade para com eles, as privações que sofrem. Lutar contra essas privações, levando-as com eles, não é completamente alheio à atitude de oferta que queremos fazer, dia após dia, de nossas vidas. 

Uma segunda consideração: de qualquer forma, não se trata de ser como os pobres, mas de nos localizarmos com eles como irmãos. E aqui não somos os únicos atores. Se há um esforço de nossa parte para estar o mais próximo possível deles, outra parte deste processo não depende de nós. Não podemos ser "como eles". Muitos aspectos da nossa vida fazem que não sejamos do seu "grupo", mas sentem em nós o desejo de nos aproximarmos. Nos perdoarão todas as nossas riquezas e seguranças. Quantos exemplos poderíamos dar, vocês também, desta acolhida que não se fecha à diferença! 

No entanto, há também, um certo número de atitudes de fundo que nos permitem entrar nessa dinâmica de Nazaré. 

O primeiro é inscrever-se na escola dos pequenos[10]. 

Eu gosto de fazer um paralelo com um versículo das constituições (que li acima) e uma passagem do Evangelho: 

"Os irmãos estão no meio dos homens, não para se converterem em pastores ou guias, mas simplesmente para ser seus irmãos" (Constituições) e "Quanto a vós, não vos denominais "mestres", porque um só é vosso mestre, enquanto que todos vós sois irmãos" (Mt 23,8). 

Para mim é muito significativo que a palavra "irmão" esteja associada neste texto do evangelho não ao Pai[11], mas ao mestre, ao que ensina. Como se colocasse o dedo em uma das nossas grandes tentações: querer sempre ensinar aos outros sem desejar aprender deles! 

Querer estar no meio dos homens "simplesmente para ser seus irmãos" nos convida a entrar em outra atitude: somos irmãos dos pequenos se caminhamos juntos, compartilhando nossas luzes. Isto é ao mesmo tempo a espera e a realização da nova aliança prometida: 

"Cravarei a minha lei no seu peito, a escreverei em seu coração (...) Não terá que instruir um ao seu próximo, outro ao seu irmão, dizendo: ‘Conhece ao Senhor’ porque todos me conhecerão do menor ao maior" ( Heb 8, 10 citando Jer 31, 33ss). 

Para estabelecer uma relação de verdadeira fraternidade, não é suficiente, mesmo que seja uma disposição necessária, "fazer-se do país" - como dizia Carlos de Foucauld - "ser acessível, pequeno" para que o outro possa se atrever a pedir-me qualquer coisa. Que o outro possa me ver como um irmão não será suficiente se eu não mudo meu olhar sobre ele. De sua fidelidade, hesitante como a minha, posso aprender e, graças a ele, crescerei se aceito entrar em sua escola; então e somente então, caminharemos juntos verdadeiramente, como irmãos. 

Uma segunda atitude é ter um coração vigilante, estar permanentemente atento para buscar a face do Senhor. Esta atitude está em relação direta com a primeira. 

Supõe, sobretudo, ler e reler o Evangelho[12]. Em primeiro lugar não para procurar uma moral nele, para sondar o que está bem e o que está mal, mas constantemente buscar o rosto de Jesus: olhar para ele, atuar, explorar suas reações, ver seus comportamentos. E assim, pouco a pouco, nos deixar habitar e transformar por ele. Ele é um homem de Nazaré, um "pequeno": olhando-o podemos descobrir paulatinamente como nos comportarmos no mundo do povo simples que é o nosso, aprender a nos maravilharmos como ele, a deixar-nos tocar pela compaixão, a lutar contra o mal, a encontrar o caminho em direção do Pai. Simplesmente, a amar! 

Essa busca pelo rosto de Jesus é "um compromisso de tempo integral". Não apenas em tempos de oração, mas na vigilância de um coração desperto. Não cumprimos somente com os momentos de oração ou de leitura do evangelho: cada encontro, cada acontecimento, deveriam nos encontrar atentos para buscar o rastro do Senhor que prometeu acompanhar-nos; fazer uma leitura da nossa vida para poder, como o discípulo que Jesus amava, reconhecer-lhe sob os traços incertos na vida cotidiana ( Jo 21, 7 e 12). 

"Todo aquele que vos der um copo de água para beber, por pertenceres a Cristo, asseguro-lhes que não perderá a sua recompensa" (Mc 9:41, Mt 10,42) . 

Em um contexto (Mc 9 : 33-34), no qual os discípulos perguntam: "Quem é o maior?" Jesus, chama uma criança e diz: 

"O maior é aquele que é pequeno como esta criança, já que permitirá aos que acolhem, que recebam a mim e a Aquele que me envia (v.37). O maior é aquele que é suficientemente pequeno para deixar transtornar suas certezas e reconhecer o bem venha de onde vier, mesmo onde não se o espera (v. 39 s). O maior é aquele pequeno o suficiente para pedir para um copo de água, permitindo ao que lhe dá, mostrar-se irmão e ganhar um lugar no Reino de Deus (v. 41)". 

Talvez tenhamos assimilado bem demais a frase que São Paulo atribui a Jesus: 

"Há mais alegria em dar do que em receber" ( At 20,35). 

Nós gostamos de dar; não gostamos nada de deixar entrever nossas necessidades; nós não aceitamos tão facilmente receber. O que desejamos fazer aos outros (mostrar que somos seu irmão vindo em sua ajuda, acolhendo-o, valorizando-o, tornando-nos seu próximo), não permitimos que o façam conosco. Caminhar juntos, de verdade, sem esconder nossos limites e nossas necessidades, com nossas pequenezes e nossas grandezas, talvez seja dar a eles a possibilidade de nos considerar seus irmãos nos dando, simplesmente, o que nos falta! 

Conclusão 

Gostaria para terminar, de ilustrar o que acabei de dizer com três pequenas histórias pessoais, três rostos que podem nos ajudar a concretar o que venho expondo. Não sei se vocês conhecem o filme argentino de Carlos Sorín "Histórias mínimas". Nossas histórias são sempre histórias "mínimas", pequenas coisas, mas há de estar no bom lugar para acolhe-las e perceber o mistério que nos mostram, dar graças, suplicar, chorar, gritar. Se estamos atentos, são histórias cheias de significados e reveladoras do mistério. 

A primeira, é David, um amigo que visitei por anos na prisão. Foi ele quem me ensinou a profundidade do que é o perdão. Ele me havia contado que uma vez, um colega na prisão, lhe prometera: 

"Quando eu for embora, juro, organizarei sua fuga". David, razoável, havia lhe dito: "Não faça juramentos como esse, você sabe, entre nós, o que acontece àqueles que faltam à palavra dada". 

O outro sustentou a promessa, saiu da prisão e, é claro, nunca retornou. Quando volto para visitá-lo, acho-o irritado e desapontado. Tento acalmá-lo, explicando: 

"Se você já sabe, dentro, você é capaz de fazer promessas porque não mede as dificuldades, uma vez fora, você percebe que é muito mais complicado; você tem que compreendê-lo". 

Então, David me diz: 

"Sim, você quer falar-me do perdão (eu não havia falado disso), mas você sabe? Se eu quiser perdoá-lo, preciso mudar todas as minhas leis interiores!” A mim, nunca haviam explicado o perdão desta maneira! 

Uma segunda história: sobre o melhor presente de Natal que recebi esse ano. Em frente ao centro comercial, onde trabalhava, há todo um grupo de homens, jovens, sem-teto, pessoas de rua, que passam o dia bebendo e mendigando. 

Pouco a pouco fomos conhecendo-nos, eu parava para cumprimentar, aprendi seus nomes e eles aprenderam o meu; fomos criando uma pequena amizade, gosto de vê-los e estar com eles e acho que eles também gostam que eu pare um momento. Na véspera da Epifania, uma associação de ajuda estava dando-lhes “Roscones de Reyes[13]” no momento em que eu estava passando. Quando eu ia sair, um deles me parou e disse: 

"Espere!, Pascual foi buscar algo!" E Pascual volta com um roscón: "Toma, gordo, é para você, para que faça a festa". Quando o excluído se torna inclusivo, há uma grande alegria no Reino dos Céus. Vocês não acham? 

Terceira história, também no trabalho: havia muitos jovens estagiários enviados pelas escolas de formação profissional . A maioria são jovens árabes, geralmente não muito bem vistos. Eu tenho o hábito de perguntar pelos seus nomes. Fiquei muito surpreso ao ver o quão importante era para eles este pequeno detalhe insignificante: quando no dia seguinte volto a vê-los novamente e digo: "Olá Jamal" ou "Olá Kader ", quantas vezes eles me disseram com alegria e surpresa marcada no olhar: "Você se lembrou do meu nome!"; e depois eram eles que vinham me cumprimentar, embora não seja comum que eles façam isso com os outros. 

Isso me fez pensar muito e, talvez, compreender mais profundamente as palavras de Jesus: 

"O pastor conhece suas ovelhas e chama cada uma pelo seu nome e elas o seguem". A que profundidade do humano, a que espera secreta de salvação, Jesus alude nesta simples frase! 

O interessante para mim é que essa história teve uma continuação. Meu chefe é um muçulmano praticante, um homem aberto e curioso: falamos muito sobre religião, política, justiça, com muita liberdade e amizade. Ele sempre comentou sobre a minha maneira de fazer, ele insistia sempre em dizer que ali onde eu falava, sobretudo de humanidade, a fonte da minha atitude era a minha fé em Deus. Eu gostava do que ele me dizia. Ele havia notado minha atitude com os jovens e que eles vieram me cumprimentar. Nós conversamos e eu pude explicar a ele o que ele tinha podido descobrir do mistério do amor de Deus a partir da frase sobre as ovelhas. Quando saí do trabalho (acabei de me aposentar) ele me disse, fazendo referência a esta pequena história: 

"Eu vou sentir sua falta . Estar com você me fez trabalhar sobre o meu Islã: há uma dimensão da humanidade em vocês que nós não temos”. 

E eu agradeci sua ajuda em reler minha vida. Tudo isso foi possível porque estamos juntos há mais de um ano, com a vassoura na mão. 

Desta vez eu termino de verdade. Com uma frase do evangelho que é para mim uma grande luz: "Tu és o sal da terra: se o sal perde o seu sabor, com o que a salgará?" (Mt 5,13). 

Há um mistério no sal e se percebe até no nosso modo de falar: se a comida é insossa, dizemos: "Falta sal!"; e se há demais, dizemos: "Você pôs muito sal!"; mas quando está no ponto certo, não falamos mais de sal, dizemos: "Que sopa gostosa!"; é o sabor da comida que se destaca, não o do sal. 

Este é o significado desta imagem do Evangelho. Às vezes, nos perguntamos com ansiedade, como dar um gosto ao cristão ao mundo hoje. Não sei se é a boa interrogação. O mundo tem gosto, Deus o colocou. Nosso papel como cristãos é estar presente no mundo para que essa troca misteriosa ocorra e que o sabor divino do mundo possa ser expresso. Não o nosso gosto. 

Podemos falar melhor sobre Nazaré? 

MARC HAYET
Prior dos Irmãozinhos de Jesus 

Texto retirado do boletim da Fraternidade Jesus Caritas da Espanha, de dezembro de 2012, disponível em: http://www.carlosdefoucauld.es/pdf/Boletin-175.pdf Acesso em 09 Fev. 2019. 

[14] CARTA A GABRIEL TOURDES, 7 de março de 1902. 

[1] A propósito da vivenda, eu me lembro de um jovem cubano (e é uma história que eu ouvi em diferentes países) que vinha para a fraternidade para um primeiro contato, para "ver" e quando ele chegou ao bairro ilegal no qual moram os irmãos na Havana, se virou dizendo: "Eu devo ter errado de endereço: não pode haver uma casa de religiosos em um bairro como este". 

[2] CARTA A LUIS DE FOUCAULD, 12 de abril de 1887. 

[3] CARTA A MARIA DE BONDY, 10 de abril de 1895. 

[4] "É doloroso ser tão bom com os assassinos de nossos irmãos ", carta a MARÍA DE BONDY, 24 de junho de 1896. 

[5] CARTA AO PADRE CARON, 9 de abril de 1905. 

[6] CADERNOS DE BENI ABBES, 26 de maio de 1904. 

[7] CADERNOS DE TAMANRASSET, 22 de julho de 1905. 

[8] CARTA A HENRY DE CASTRIES, 8 de janeiro de 1913. 

[9] CARTA AO PADRE VOILLARD, 11 de junho de 1916. 

[10] "Escutarão antes de mais nada, tudo aquilo que constitui o fundo do coração de seus amigos e as riquezas do povo com os quais vivem, aprendendo dos pobres que são o tesouro da Igreja". (Constituições dos Irmãos de Jesus). É significativo que essa passagem se encontre no capítulo sobre nossa missão na Igreja. 

[11] Muitas vezes nos referimos a este texto dizendo: "Todos vocês são irmãos, já que só têm um Pai"; é certo evidentemente, mas não é isso que o evangelho diz! É importante respeitar o texto. 

[12] "Devemos tratar de nos impregnarmos do espírito de Jesus lendo e relendo, meditando e voltando a meditar constantemente suas palavras e seus exemplos: que eles façam em nossas almas como a gota d’água que cai e cai sobre uma pedra, sempre no mesmo lugar (...)”. CARLOS DE FOUCAULD Carta a Louis Massignon , 22 de julho de 1914. “Voltemos ao Evangelho. Se não vivemos o Evangelho, Jesus não vive em nós". CARTA AOS MONS. CARON, 30 de junho de 1909. 

[13] Rosca doce redonda com um orifício no meio, que se costuma comer, na Espanha, por ocasião da festa do Dia de Reis (6 de janeiro). 

Vejam também nossos boletins da Fraternidade Leiga AQUI