12 novembro 2012

CISTESCIENSES, S. BERNARDO, S. BENTO




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QUEM SÃO OS CISTERCIENSES

Os cistercienses são herdeiros de uma da mais belas tradições espirituais da Igreja. Pode-se mesmo falar de uma escola cisterciense de espiritualidade, pois há um grupo notável de autores, sobretudo no século XII, com uma temática de grande uniformidade. O maior nome é, sem dúvida, Bernardo de Claraval. 

Qual a sua mensagem? Os cistercienses combinavam dois elementos da tradição monástica: uma componente de vida eremítica – a solidão e o silêncio em que viviam os monges para dedicar-se à oração – e a vida fraterna proposta pela Regra de São Bento que, por sua vez, realiza o ideal da vida apostólica, ou seja, a unanimidade de coração e alma da comunidade primitiva de Jerusalém em torno dos Apóstolos, uma existência em que o amor de Deus transborda em amor fraterno e comunhão. 

Dentro de um quadro de austeridades que compreendem não só o afastamento do mundo (porém não um desinteresse pelo mundo em suas carências e aflições), mas também o despojamento da pobreza e da simplicidade, um regime alimentar sóbrio e a fecunda monotonia do trabalho manual, unidas a um intenso ritmo de oração (comunitária – o ofício divino recitado em coro – e individual) e a lectio divina (leitura meditada que leva à oração, sobretudo usando a Sagrada Escritura), o monge deveria encontrar a Deus.

De fato, os cistercienses encontravam-se com Deus em Cristo e seus escritos falam abundantemente deste encontro de amor. O claustro é, então, nesta perspectiva, um paraíso, porque é o lugar em que o homem reencontra sua harmonia, perdida pelo pecado e o afastamento de Deus. No claustro, o homem está a sós com Deus e pode viver a perfeição da caridade, também nas relações fraternas. Não é ocasional o fato de os cistercienses terem sido doutores da amizade espiritual.

Por tudo isso, os mosteiros cistercienses tornaram-se um sinal eloquente do absoluto de Deus que merece a consagração total da vida humana na profissão monástica. Ainda hoje os mosteiros cistercienses desejam viver e transmitir essa herança, apresentando-se como centros de irradiação no ambiente em que estão implantados. Ao longo do tempo, os monges assumiram encargos diversos na Igreja. 

Assim, nem todos os mosteiros da Ordem exercem o mesmo tipo de atividades. Há os que se dedicam a certas obras de apostolado externo, como a pastoral paroquial e a educação da juventude, outros acolhem grupos para retiros espirituais ou entregam-se exclusivamente à vida contemplativa, fazendo desta sua principal forma de expressão da caridade cristã. Seja como for, os mosteiros cistercienses querem dar testemunho de uma existência sobrenatural, em que Deus é buscado em primeiro lugar e tudo se ordena em função desta busca. Mediante sua intercessão e sua irradiação, os monges querem levar todos os homens a participar de sua vocação.


SÃO BERNARDO DE CLARAVAL

Ainda que o Abade de Claraval não pertença ao grupo de fundadores do Mosteiro de Cister, sua importância para a Ordem é tão grande, que, desde muito cedo, falou-se nos cistercienses como os filhos de S. Bernardo. Por isso parece justificável uma pequena digressão para apresentá-lo mais detalhadamente. Bernardo nasceu em 1090 no castelo de Fontaines, do qual seu pai era o senhor. 

Certamente tratava-se de uma pequena fortificação para a defesa avançada de Dijon, capital da Borgonha. Cavaleiro a serviço do Duque da Borgonha, Tecelino era casado com Alete de Montbard. Embora sua família pertencesse à pequena nobreza, por sua ascendência, sobretudo do lado materno, Bernardo parece ter sido ligado à grande nobreza e talvez mesmo à realeza, incluindo a casa ducal da Borgonha. Seus diversos laços de parentesco, segundo alguns estudiosos, teriam sido de grande ajuda para sua atuação nos diversos empreendimentos a que esteve ligado.

A formação de Bernardo foi feita em Chatillon, onde os cônegos da igreja de Saint Vorles possuíam uma bem conceituada escola. Destinado inicialmente a uma carreira clerical, passou por um processo de conversão e decidiu entrar no Mosteiro de Cister, justamente por sua reputação de rigor e santidade de vida. Bernardo desejava então morrer para o mundo e ocultar-se numa existência humilde, dedicada inteiramente a Deus. 

A maioria dos historiadores dos inícios de Cister admite que seu ingresso no Novo Mosteiro tenha ocorrido em 1113. Sabe-se que nesse ano Cister fundou sua primeira filha, La Ferté, o que indicaria que a comunidade estava em crescimento e em condição de expandir-se. Qual a relação de S. Bernardo com essa fundação? Seus biógrafos afirmam que entrou em Cister com trinta companheiros, muitos dos quais eram seus parentes, incluindo alguns de seus irmãos.

Mais que isso, Bernardo foi o seu líder espiritual, pois atuou de forma a convencê-los a ingressar na vida monástica e, por alguns meses, exerceu o papel de seu formador, transmitindo seus próprios ideais ao grupo que já vivia em comum, preparando-se para sua admissão no Novo Mosteiro. Discute-se hoje a afirmação desses primeiros biógrafos e de uma longa tradição, segundo a qual Cister foi salva da extinção pelo ingresso de Bernardo e de seu grupo. 

De fato, se o mosteiro não recrutava e caminhava inexoravelmente para seu fim, de onde lhe vinham as forças para fundar uma nova abadia? Há porém quem sustente, em amparo da tese tradicional, que a fundação de La Ferté foi feita em previsão do acolhimento do grupo de Bernardo que já estaria em contacto com Cister e seu abade Estêvão Harding. Contudo, mesmo se La Ferté não dependeu da entrada daquele grupo e Cister não estava a ponto de desaparecer, todos concordam que o impacto de Bernardo e de seus companheiros foi decisivo para sua expansão posterior, incluindo as fundações de Pontigny (1114), Morimond e Clairvaux ou Claraval (1115), a testa da qual o jovem Bernardo foi colocado como abade. Bernardo e seus companheiros terão daí por diante uma considerável influência na Ordem em formação, sobretudo no plano dos ideais.

Voltando porém à pessoa de Bernardo, sua personalidade extremamente rica e complexa tem despertado o interesse dos historiadores ou dos estudiosos da espiritualidade de todas as épocas. Ainda na atualidade, regularmente são lançadas publicações sobre sua vida ou obra. Aliás, falar sobre o Abade de Claraval de forma compreensiva é tarefa difícil e arriscada, pois muitos e diversos são os aspectos a considerar. 

Pode-se abordar o monge e o abade, com seu exemplo de vida e sua doutrina espiritual que deixa entrever o místico, mas não se pode esquecer o homem público e o reformador, o escritor genial - talvez o maior de seu tempo - ou o homem sensível e de intenso relacionamento humano. Sabe-se que seu desejo inicial de humilhação e ocultamento não pôde ser realizado. 

Desde muito cedo Bernardo destacou-se, primeiro como apologista e difusor do monaquismo reformado de Cister, depois, a partir de seu envolvimento na defesa da legitimidade da eleição do papa Inocêncio II, tornou-se uma personalidade de projeção européia. A promoção dessa causa colocou-o em contacto com reis e príncipes e a deposição de Anacleto que se havia imposto como papa em Roma, deve-se em grande parte a sua atuação. Desde então o prestígio de S. Bernardo não conheceu limites. Sua atuação no plano eclesial mais amplo foi marcada pelos ideais da Reforma Gregoriana.

Seu zelo pela reforma da Igreja levou-o a interferir em diversas questões, seja corrigindo e admoestando bispos - certa vez escreveu ao arcebispo de Sens, seu próprio metropolita, que a sede episcopal que ocupava exigia um homem de relevantes méritos e lamentava não encontrá-los nele - e soberanos, seja combatendo erros doutrinais e heresias. A carta 238, a primeira das muitas que escreveu ao papa Eugênio III, seu antigo discípulo e monge de Claraval, é muito clara quanto às suas preocupações:

“Quem me dera poder contemplar, antes de minha morte, a volta da Igreja aos belos tempos apostólicos, quando estendia as redes para apanhar almas e não para pescar riquezas de ouro e prata.”


Embora estivesse consciente do papel próprio do monge, sua atividade externa que o levou freqüentes vezes para fora do claustro foi movida pela caridade e o desejo de servir à Igreja. Deve ser observado, porém, que sua ação não teria nenhuma repercussão se não estivesse baseada na sua autoridade moral e na reputação de virtude de que gozava. Sua vasta correspondência - mais de quinhentas cartas foram conservadas - mostra-o em contacto com as mais diversas categorias de pessoas, religiosos e religiosas, prelados, papas, nobres, reis e rainhas, dando a perceber a grande ascendência que tinha sobre muitos de seus correspondentes. 

S. Bernardo foi procurado para dirimir conflitos, efetuar reconciliações, opinar sobre questões teológicas, confortar e dirigir pessoas que depositavam nele toda sua confiança. A ele coube, por incumbência do papa Eugênio III, pregar a Segunda Cruzada, vista por Bernardo antes como empreendimento espiritual e uma causa justa do que como empresa bélica ou de conquista. Enfim, pode-se dizer que foi canonizado, ainda em vida, por seus contemporâneos, que viam nele, mais do que o grande abade e pregador que falava com autoridade a reis e papas, o modelo acabado de santidade. 

Por isso mesmo, Guilherme de Saint-Thierry, um dos mais fecundos e cultos autores espirituais da época, seu grande amigo e também abade, mas depois simples monge cisterciense, iniciou, ainda enquanto Bernardo vivia, sua biografia, certo de estar narrando a vida de um santo. Eis aqui um trecho deste escrito, denominado Vita Prima, onde Guilherme narra seu primeiro encontro com o ainda jovem abade de Claraval, em convalescença numa pequena cabana próxima ao mosteiro, em razão de seu esgotamento causado por austeridades excessivas:

“ Tendo entrado nessa cabana real, ao considerar tanto a habitação, como aquele que ali estava, senti-me penetrado de um tão grande respeito que, invoco a Deus por testemunha, era como se tivesse subido ao seu altar sagrado. Experimentava tão grande felicidade em contemplar esse homem e um tal desejo de compartilhar sua pobreza e a simplicidade de sua habitação que, se me fosse dada a escolha, nada teria desejado mais que permanecer sempre a seu lado para servi-lo.”


Incansável foi também o promotor da reforma monástica. Muito da intensa atividade de S. Bernardo explica-se pelo desejo de difundir a vida cisterciense e fazer crescer a filiação de sua querida Abadia de Claraval . Nesse campo sua atuação foi prodigiosa. O ritmo de expansão da Ordem Cisterciense durante sua vida nunca mais foi atingido. Bernardo pôs a serviço dessa causa seu talento extraordinário de escritor e teve o mérito de dar forma e expressão, de maneira eloquente e atrativa, ao ideal de Cister. Uma célebre passagem de sua carta 142 tornou-se para a posteridade uma espécie de definição da vida cisterciense:

“Nossa maneira de viver é de abnegado serviço, de humildade, de pobreza voluntária. É a obediência, paz e alegria no Espírito Santo. Nossa vida é estar sob um mestre, um abade, uma regra e uma disciplina. Nossa vida é aplicar-se ao silêncio, praticar o jejum, as vigílias, orações, trabalho manual e sobretudo seguir o mais excelente caminho que é a caridade. Em todas essas observâncias, ir crescendo dia-a-dia e nelas perseverar até o último dia.”

Mas o monge cheio de ardor cuja ascese rigorosa comprometeu para sempre a saúde, soube também ser um pai espiritual cheio de ternura, que lamenta estar fora do mosteiro e longe de seus monges de Claraval. Da Itália, escreveu certa vez a Claraval, na carta 143, que, enquanto seus filhos choram pela ausência de um só, ele, Bernardo, deve chorar muito mais, pois é um só a sentir a ausência de todos. De fato, em sua concepção, o mosteiro é uma escola de caridade, onde Cristo é o mestre e a disciplina ministrada é o amor. Exercitando-se no amor mútuo e no amor a Cristo o monge prova ser discípulo da verdade. 

No exercício desse encargo de paternidade espiritual, além de sua terna caridade, ajudou-o muito seu conhecimento da alma humana. Seus escritos revelam-no possuidor de fina psicologia , como nas descrições que faz das diversas manifestações do orgulho humano no seu “Tratado dos graus da humildade e da soberba”, sua primeira obra, onde apresenta o itinerário da conversão à união mística com Deus. Eis aqui um trecho cheio de humor em que apresenta o monge tomado pela jactância, o quarto grau da soberba:

“É preciso que fale ou então arrebentará. Tem muito o que dizer e não pode conter-se mais. Tem fome e sede de ouvintes, aos quais lance suas vaidades, a quem declare seus sentimentos e faça conhecer o que é e o quanto vale. Encontrada ocasião de falar, se o assunto tratado são as letras, saem coisas novas e velhas, voam as frases, ressoam empoladas as palavras. Antecipa-se a quem o interroga, responde a quem não lhe pergunta. Ele mesmo pergunta, ele mesmo resolve, interrompendo a frase incompleta do interlocutor.”

Sua vastíssima obra compreende alguns tratados, uma grande coleção de sermões, cartas e outros escritos. A contribuição de Bernardo para a Teologia, sobretudo na Cristologia, ainda está para ser devidamente avaliada. Sua sólida reputação de autor espiritual valeu-lhe o título de doutor da Igreja. Alguns de seus mais belos sermões foram dedicados à Virgem Maria, uma devoção de todos os cistercienses.
Do que escreveu, sobretudo dirigindo-se a monges, pode-se colher algo de seu itinerário espiritual. 

O ponto inicial deste parece ter sido um sadio encontro consigo mesmo de maneira a conhecer a própria ambiguidade. Bernardo percebeu certamente em si, nos seus primeiros anos de vida monástica, o homem sujeito a fraquezas e paixões, como ele mesmo o admite nesta passagem de um de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos (s. 16,1):

“Muitas vezes, não me envergonho de dizê-lo, sobretudo no início, quando entrei no Mosteiro, descobria em mim um coração duro e frio...”

Nesse processo de autodescoberta chegou à humildade que define como o conhecimento de si mesmo que torna o homem desprezível a seus próprios olhos. Todavia o autoconhecimento, com todas as decepções em que acarreta, não o levou ao desespero ou ao pessimismo mas projetou-o para Cristo. Assim descreve sua atitude (cf. s. 43,1 sobre o Cântico):

“ Também eu, quando me converti, irmãos, dei-me conta de que me faltava toda espécie de méritos. Em seu lugar tratei de fazer um pequeno ramalhete, para colocar junto ao meu peito, contendo todas ansiedades e amarguras de meu Senhor:...as bofetadas, as troças, as acusações, os cravos e todos os demais sofrimentos que sabemos ter padecido até a saciedade....para a salvação da humanidade.”

Bernardo, o amigo de Cristo, ascendeu na vida espiritual através da humildade e da confiança em sua misericórdia e seu amor. Por essa sadia ascese, que o fez olhar com simpatia e compaixão para seus irmãos, em quem via a mesma fragilidade que soube reconhecer em si, abriu-se a uma caridade mais perfeita e tornou-se mais capaz de receber os dons de Deus. Em um texto composto na última etapa de sua vida, certamente expressou algo do que viveu em seu íntimo (cf. Sermão sobre o Cântico 74, 5-6):

“ Ocorre às vezes que a alma é de tal forma arrastada para fora de si, separando-se de seus sentidos corporais, que não sente mais a si mesma, pois só é capaz de sentir o Verbo. Isto se realiza quando o espírito, encantado com a doçura do Verbo inefável, rouba-se por assim dizer a si mesmo, ou melhor, é arrebatado e tirado a si para gozar do Verbo.”


Num outro plano, encontramos o homem que se revela em toda sua sensibilidade afetiva, através de grandes e ternas amizades. Durante sua vida Bernardo esteve ligado intimamente a várias pessoas, homens e mulheres. Em suas amizades o natural - afeição, simpatia, afinidades - está ligado ao sobrenatural, os amigos e amigas eram amados em Deus. É assim que podia escrever à duquesa Emengarda da Bretanha, na carta 116:

“Se pudesses ler em meu coração o que aí o dedo de Deus dignou-se escrever quanto à minha afeição por ti...”


Bernardo, cuja saúde era precária desde a juventude, faleceu afinal em 1153, venerado como um santo e rodeado de seus monges em Claraval. Era então, segundo a expressão de Galand de Reigny, também cisterciense, o homem “cuja face todo o mundo desejava contemplar.”


SÃO BENTO

Os séculos IV e V conhecerão a expansão do monaquismo, surgido já no século III, no Egito, por toda a Cristandade, inclusive no Ocidente de cultura latina. Santo Agostinho, que foi batizado em 387, viveu com companheiros uma existência de tipo monástico e escreveu uma regra de vida comum. 

Outros nomes importantes, no Ocidente, foram S. Martinho que fundou mosteiros na França e Jerônimo, que pregou o ascetismo em Roma e viveu como monge na Palestina. Ainda na França, tiveram grande influência na difusão da instituição monástica Cassiano, Honorato de Lérins, Cesário de Arles, sobretudo por seus escritos e regras monásticas.


Enfim, nas últimas décadas do século V, já se havia construído uma sólida tradição de vida monástica, tanto no Ocidente como no Oriente, onde S. Basílio Magno, no século anterior, tornou-se o grande legislador monástico. É precisamente neste contexto que surge a figura de Bento de Núrsia, um jovem de classe alta que abandona seus estudos em Roma para fazer-se eremita numa gruta nas imediações de Subiaco. Com o passar do tempo, afluem numerosos discípulos e Bento torna-se pai de monges e fundador de mosteiros.

Após uma longa experiência como abade, não isenta de vicissitudes e dificuldades, S. Bento fixa-se em Monte Cassino, onde funda um mosteiro e escreve a sua famosa regra monástica que estava destinada a tornar-se o código de vida de praticamente todos os mosteiros do Ocidente cristão. A tradição admite que S. Bento nasceu em torno de 480, escreveu sua regra por volta de 530, vindo a falecer pouco depois. O papa Gregório Magno foi seu biógrafo, deixando-nos o único testemunho escrito a respeito de sua vida e virtudes, ainda que não estritamente histórico, no sentido moderno do termo.


A grande importância de S. Bento reside no fato de que, usando o melhor da tradição monástica anterior, tanto do Ocidente como do Oriente, compôs uma regra notável por seu equilíbrio e sabedoria espiritual, aliás fruto também de sua longa experiência como pai de monges.


Além disso, sua regra é profundamente evangélica, centrada em Cristo - nada antepor a Cristo é um de seus refrões - e permeada de uma delicada atenção para com a pessoa humana, ou, como diríamos hoje, de cunho personalista. S. Bento soube abrandar algumas asperezas do monaquismo contemporâneo, sem ceder em nada na elevação do ideal espiritual. 


Como apresentar, de forma breve, esta Regra tão cheia de sabedoria espiritual? Antes de tudo é preciso deixar falar seu texto. As primeiras palavras do Prólogo são, ao mesmo tempo, um convite e um programa de vida:“Escuta, filho, os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa fielmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência. 

A ti, pois, se dirige, agora, minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei.” 

O capítulo 58, que trata da maneira de receber os que desejam ingressar no mosteiro, precisa, um pouco mais, o destinatário daquele convite inicial: 

“ Seja designado para eles um dos mais velhos, que seja apto a obter o progresso das almas e se dedique a eles (isto é, os que desejam ingressar no mosteiro) com todo o interesse. Que haja solicitude em ver se procura verdadeiramente a Deus, se é solícito para com o ofício divino (ou seja, a oração que os monges rezam no coro várias vezes ao dia), a obediência e os opróbrios (as coisas difíceis que põem à prova nosso amor próprio).” 

Portanto, o convite destina-se simplesmente aos que buscam verdadeiramente a Deus, não a si próprios ou outras coisas fora de Deus.

E o que aprenderá e deverá viver no mosteiro? De acordo com o capítulo 72, a caridade perfeita dentro da comunidade fraterna que encontrará no mosteiro: 

“Assim como há um zelo mau, de amargura, que separa de Deus e conduz ao inferno, assim também há um zelo bom, que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Exerçam, portanto, os monges este zelo com amor ferventíssimo, isto é, antecipem-se uns aos outros em honra. 


Tolerem pacienciosissimamente suas fraquezas, quer do corpo, quer do caráter; rivalizem em prestar mútua obediência; ninguém procure aquilo que julga útil para si, mas, principalmente o que o é para o outro; ponham em ação de forma desinteressada a caridade fraterna; temam a Deus com amor; amem ao seu Abade com sincera e humilde caridade; nada absolutamente anteponham a Cristo – que nos conduza juntos para a vida eterna.” 

Aparece, aqui, a figura do Abade, importantíssima na Regra, pois a ele cabe conduzir, em nome do Cristo, o rebanho que lhe foi confiado no mosteiro. São Bento, dirigindo-se ao abade, no capítulo 64, pede-lhe que: 

“...saiba convir-lhe mais servir que presidir.” 

“Odeie os vícios, ame os irmãos.” 

“...faça prevalecer sempre a misericórdia sobre o julgamento.” 

“...não...permita que os vícios sejam nutridos, mas que os ampute prudentemente e com caridade...” 

e, enfim: 

“Assumindo esse e outros testemunhos da discrição, mãe das virtudes, equilibre tudo de tal modo que haja o que os fortes desejam e que os fracos não fujam; precipuamente, conserve em tudo a presente Regra...” 

Por conseguinte, no mosteiro, vive-se sob uma regra e um abade, no quadro da comunidade fraterna. O abade interpreta e aplica a regra às situações concretas, mas a regra fornece o enquadramento dentro do qual todos, inclusive o abade, devem agir.


São Bento é otimista e quer infundir esperança, sabe que propõe algo difícil – a busca da caridade perfeita através da obediência e da renúncia de si mesmo, na imitação de Cristo, que tornam o monge humilde – mas crê que o monge pode alcançar sua meta, se for fiel e perseverante (isto é, se não fugir logo, “tomado de pavor, do caminho da salvação que nunca se abre senão por estreito início”, conforme ensina no final do Prólogo), com a proteção da graça divina, como dizem as últimas palavras da Regra no capítulo 73: 

“Tu, pois, quem quer que sejas, que te apressas para a pátria celeste, realiza, com o auxílio de Cristo, esta mínima Regra de iniciação aqui escrita e, então, por fim, chegarás, com a proteção de Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtudes de que falamos acima. Amém.” 

Ainda que nos séculos que se seguiram a S. Bento, houvesse, no monaquismo do Ocidente, grande variedade de regras e observâncias monásticas, sua Regra acabou por impor-se, seja por suas próprias qualidades, seja pela ação de Bento de Aniane que, tendo obtido a confiança do imperador Luiz , o Piedoso, influenciou a legislação referente à vida monástica no sentido de conferir-lhe o papel de código exclusivo para reger a vida dos mosteiros. Estamos, então, no início do século IX, quando a instituição monástica, velha de alguns séculos, já experimentou, por mais de uma vez, a necessidade de reforma.